Franz Kafka inédito e na intimidade

  • O Globo
  • 21. März 2003
  • Graça Magalhães-Ruether

Antiquário de Viena põe à venda espólio de um médico húngaro, com 38 cartas do escritor

Quando Giselle Klopstock morreu, já bastante idosa, em 1995, deixou um tesouro valioso em casa, guardado durante décadas num baú: um pacote contendo muitas cartas, ainda inéditas, de Franz Kafka, Albert Einstein, Klaus e Thomas Mann, que faziam parte do espólio do seu marido, Robert Klopstock, o último amigo de Kafka, e que, a julgar pelo seu conteúdo, será bastante para uma revisão da imagem que se tem hoje do escritor tcheco.

- Kafka teve uma relação muito normal e conjugal com Dora Diamond - diz Hugo Wetscherek, o antiquário de Viena responsável pela venda da coleção completa de manuscritos, comprada em Nova York de herdeiros, parentes distantes do casal Klopstock.

As cartas devem mostrar, por exemplo, como a relação entre Kafka e Dora foi subestimada, quase abafada, pelos biógrafos, que preferiam que Kafka atraísse o seu público leitor como um escritor genial, uma personalidade incrivelmente introvertida e incapaz de uma relação normal com o sexo oposto.

No pacote, cartas de Einstein e de Thomas Mann

Outro aspecto interessante é que Robert Klopstock, na época estudante de medicina, pode ter praticado a eutanásia a pedido do escritor, que nos últimos dias de vida não suportava o sofrimento causado pela tuberculose. Já as cartas do físico Albert Einstein e do escritor Thomas Mann, escritas quase duas décadas depois, são um pedido de ajuda a Klopstock para Klaus, o filho de Thomas, que tinha o organismo destruído por drogas.

Hugo Wetscherek está oferecendo o pacote de originais, a partir de hoje, por 1,2 milhão de euros, quantia astronômica mas que, em se tratando de Kafka, um dos autores preferidos dos colecionadores, não é grande coisa. No ano passado, um envelope vazio endereçado por ele à sua então namorada, Felice Bauer, foi vendido em Berlim por quatro mil euros. O antiquário lança ainda um catálogo que é também a história da relação pouco conhecida do escritor com o seu amigo húngaro, nos braços de quem morreu: "O último amigo de Kafka: o espólio de Robert Klopstock, 1899-1972".

Das 38 cartas de Kafka, 31 eram em parte conhecidas, embora o texto original não tivesse ainda sido publicado, enquanto que sete são inéditas. Nem Max Brod, o amigo de Kafka responsável pela publicação póstuma da sua obra, tinha conhecimento delas.

Brod, que salvou a obra de Kafka do próprio escritor - que havia exigido que todos os seus manuscritos fossem destruídos após a sua morte - e, mais tarde, dos nazistas, que ao invadir a Tchecoslováquia mandaram confiscar toda a obra de artistas judeus, publicou em 1958 a primeira edição de cartas de Kafka. Na obra foram divulgadas apenas algumas cartas do escritor ao jovem médico húngaro, que Kafka descreveu a Brod como "um homem louro, de faces avermelhadas, alto e largo".

Robert Klopstock era estudante de medicina quando conheceu Kafka, em um sanatório, em 1921. A origem judaica e a tuberculose, doença comum aos dois, fizeram surgir uma grande amizade. Klopstock, que devido à doença havia interrompido o estudo de medicina em Budapeste, visitaria Kafka mais tarde, em Praga.

Os dois praticamente se completavam. Kafka, que chamava o amigo de "o médico", ajudava-o, tendo tentado até conseguir uma vaga para Klopstock na faculdade de medicina de Praga. Dava também conselhos sobre o que deveria ler. A amizade intensa e o estado grave de saúde de Kafka criaram uma situação quase de dependência, ao ponto de Dora Diamond, a última namorada, que ajudou a cuidar do escritor quando este estava moribundo, sentir ciúmes de Klopstock.

No estágio final da doença, Kafka foi transferido para um sanatório de Viena, onde foi tratado por Marcus Hajek, cunhado do escritor Arthur Schnitzler. Dora escreveu a Klopstock: "Robert, ajude da forma que for possível ajudar. Os médicos estão no fim do seu poder. Desistiram do caso. A clínica para onde Franz foi transferido é terrível. Duas pessoas sofrendo em um cela, cama junto de cama. Ele não pode mais comer nem falar. Robert, ajude!"

Pouco depois, foi transferido para outro sanatório, em Kierling. Ele sabia que ia morrer. No fim, não suportando as dores, apelou a Robert para que praticasse a eutanásia: "Mate-me, pois de outra forma você é um assassino". Robert deu um remédio. Pouco depois, quando ia se distanciar da cama para preparar mais uma injeção, ouviu de Kafka: "Por favor, não saia", e, em seguida, reagindo à resposta do amigo, completou: "Mas eu vou embora". E fechou os olhos. No atestado de óbito, a causa da morte, no dia 3 de junho de 1924, foi definida como "parada cardíaca".

Thomas Mann culpou médico pela morte do filho

Klopstock, que tinha apenas 25 anos, cultivou a memória do amigo como a de um santo, até a sua morte, em 1972. Mesmo no auge do sucesso da obra de Kafka, nos anos 60 e 70, ele nunca abriu a boca para contar sobre a proximidade que tivera com o mestre do absurdo. Também Giselle, que continuou vivendo em Nova York após a morte do marido - os dois não quiseram morar na Europa devido à ferida do Holocausto - continuou guardando tudo como uma relíquia.

- Mesmo hoje é difícil compreender como Klopstock, que também tinha ambição literária, nunca usou essa amizade pelo menos para contá-la em um livro - comenta Wetscherek.

Treze anos depois da morte de Kafka, o médico recebeu muitas cartas de outro escritor famoso, Thomas Mann, e do físico Albert Einstein. Com a ajuda dos dois, exilou-se nos Estados Unidos, em 1938, escapando da morte quase certa na Europa. Nos EUA, fez carreira como professor universitário de pneumologia.

Thomas Mann e Einstein haviam em 1937 pedido a ajuda de Klopstock, que na época vivia em Budapeste, para o tratamento de Klaus Mann, o filho mais velho de Thomas, viciado em drogas. Mas a tentativa não surtiu efeito. Klaus Mann suicidou-se em 1949 e Thomas Mann chegou a culpar o médico austríaco, dizendo: "O veneno, que era um veneno contra o vício, ele recebeu do idiota Klopstock".